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Issue 2

Apontamentos Sobre Arbitragem e Operações de M&A

INTRODUÇÃO

O mercado de fusões e aquisições (mergers and acquisitions¾M&A, em inglês) cresceu exponencialmente no Brasil, em especial em 2021.  Há registros de que operações dessa natureza atingiram um desempenho recorde no país em tal ano. Segundo pesquisa realizada pela empresa de consultoria empresarial, KPMG,1A KPMG é uma das maiores empresas de prestação de serviços profissionais, que incluem Audit (Auditoria), Tax (Impostos) e Advisory Services (Consultoria de Gestão e Estratégica, Consultoria Empresarial, Governança Corporativa, Assessoria Financeira, Riscos, Compliance, Fusões e Aquisições, Restruturações, Inovação e Tecnologia).1  foram mais de 1.900 transações realizadas, o que representa um crescimento de 59% em comparação ao ano de 2019.2Operações de fusões e aquisições em 2021 alcançaram melhor desempenho dos últimos 25 anos, KPMG (Jul. 21, 2022), https://home.kpmg/br/pt/home/insights/2022/03/volume-fusoes-aquisicoes-alcancou-recorde-2021.html.2  Bilhões de reais foram movimentados.

O fato de as operações de fusões e aquisições impulsionarem a economia não as torna insuscetíveis de problemas.  Não são raras as disputas surgidas após o fechamento (closing) de operações de M&A.3Heiko D. Ziehms, M&A Disputes and Completion Mechanisms 5 (2018).3  Essas disputas são, em regra, complexas, ainda mais quando se trata de cross-border M&A.  Discussões sobre ajuste de preço,  declarações imprecisas ou falsas,  omissão de informações e quebra de garantias são frequentes em litígios de M&A.4Anne V. Schlaepfer & Alexandre Mazuranic, Drafting Arbitration Clauses in M&A Agreements, in The Guide to M&A Arbitration 7, 7 (Amy C. Kläsener ed., 2020).4

Os contratos de M&A costumam prever cláusulas compromissórias.  Isso evidencia,  por fatores diversos (e.g., confidencialidade do processo arbitral e possível expertise técnica dos árbitros),5Eliane Fischer & Michael Walbert, The Arbitration Agreement and Arbitrability, Efficient and Expeditious Dispute Resolution in M&A Transactions, in Austrian Yearbook on International Arbitration 21, 21 (Christian Klausegger, Peter Klein, et al. eds., 2017).5 a preferência pela arbitragem daqueles que participam dessas operações.6Harald Frey & Dominique Müller, Arbitrating M&A Disputes, in Arbitration in Switzerland: The Practitioner's Guide 1116 (Manuel Arroyo ed., 2 ed., 2018).6  Para ilustrar essa afirmação,  um levantamento feito,  em 2019,  pelo Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá indicou que 51% das arbitragens administradas por tal instituição teriam relação com contratos societários,  notadamente os contratos de compra e venda de participação societária.7Relatório anual do CAM-CCBC – Centro de Arbitragem e Mediação, Centro de Arbitragem e Mediação-CAMCC, CAM-CCBC (Jul. 21, 2022), https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/arbitragem-estatisticas/.7

O EVENTO

Ciente da importância e da complexidade das operações de M&A,  que por vezes se tornam litigiosas e são decididas por arbitragem,  o capítulo jovem do Institute for Transnational Arbitration (“Young ITA”) organizou um evento on-line,  ocorrido em 12 de maio de 2022,  para debater temas espinhosos acerca das arbitragens envolvendo operações de M&A.

Intitulado Arbitration and M&A: Hot Topics Under Brazilian Law and Beyond, o evento foi moderado por Guilherme Piccardi (Vice-Presidente do Young ITA Brazil e associado sênior do escritório de advocacia Pinheiro Neto Advogados).  Participaram dos profícuos debates: Jair Gevaerd (sócio fundador do escritório de advocacia Gevaerd & Associados e professor de Direito da Pepperdine Caruso School of Law),  Renato Grion (sócio do escritório de advocacia Pinheiro Neto Advogados),  Giovana Benetti (professora de Direito na Faculdade Federal do Rio Grande do Sul e consultora do escritório de advocacia Judith Martins-Costa Advogados) e Mariana França Gouveia (sócia do escritório de advocacia  PLMJ Sociedade de Advogados e professora da Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa).

Entre os assuntos endereçados pelos palestrantes,  destaco,  pela análise que fiz,  estes quatro como sendo os principais: (A) choque cultural entre as tradições de common law e civil law em relação a institutos jurídicos importados pelo Brasil dos Estados Unidos da América; (B) efeitos do dolo na fase pré-contratual do M&A; (C) função das cláusulas de sandbagging; e (D) cláusulas de resolução de disputas conflitantes em contratos coligados.  Reflito sobre esses pontos na sequência.

ALGUMAS REFLEXÕES A PROPÓSITO DO EVENTO

A. Choque cultural, operações de M&A e arbitragem

A primeira parte do evento realçou a importância de se situar culturalmente institutos jurídicos aplicados em operações de M&A.  Nesse ponto, foram lembradas as tradições jurídicas anglo-saxã (common law) e romano-germânica (civil law), que frequentemente protagonizam exemplos de choque cultural a propósito dos mais variados temas.

É oportuna a ressalva quanto à contextualização de institutos jurídicos tendo como base o arcabouço legal do qual eles são extraídos, pois “[n]a prática contratual, nos seus diversos aspectos, é frequente o recurso a cláusulas decorrentes do Direito anglo-americano,”1Fábio Siebeneichler de Andrade, Notas Sobre o Enquadramento da Cláusula Earn Out na Teoria Geral do Contrato de Compra e Venda, 25 Rev. Br. Dir. Civ. 141, 141 (2020).1 tais como as cláusulas de representations and warranties,  covenants,  earn-out e sandbagging.  Em se tratando de operações de M&A no Brasil, pode-se dizer que o sistema do common law “inspirou sobremaneira o padrão estrutural que é desenvolvido hoje nas minutas de contratos de compra e venda de empresas, cuja elaboração tem, como linguagem própria, a do Direito Norte-americano.”2Daniel Kalansky & Rafael Biondi Sanchez, Sandbagging Clauses nas Operações de Fusões e Aquisições (M&A), in Novos Temas de Direito e Corporate Finance 145, 149 (Henrique Barbosa & Sérgio Botrel eds., 2019) [doravante apenas: Kalansky & Sanchez].2

As partes envolvidas em operações de M&A e os sujeitos processuais das disputas que possam decorrer dessas operações devem ter consciência de que institutos importados da prática norte-americana não podem ser automaticamente replicados no Brasil, como se houvesse¾mas decerto não há¾absoluta similitude e harmonia entre os sistemas de common law e civil law desses países.  O alerta é importante especialmente na esfera contratual porque,  em regra,  o contrato faz lei entre as partes (pacta sunt servanda).  Com efeito,  uma disposição contratual advinda da prática estrangeira,  por mais clara que possa ser,  poderá ser invalidada no âmbito de uma arbitragem por ser incompatível com o Direito brasileiro.

Exemplos relevantes das diferenças entre ambas as tradições,  no tocante a operações de M&A,  dizem respeito ao dever de informar.3A propósito do dever de informar, vale conferir as lições constantes de sentença arbitral proferida em disputa de M&A envolvendo a aquisição de um grupo econômico, em que o tribunal arbitral, aplicando o Direito Brasileiro, consignou o seguinte: “O dever informacional existe independentemente de previsão contratual, sendo um dever lateral corolário do princípio da boa-fé objetiva, nos termos chancelados no art. 422 do Código Civil. Quer-se com isso dizer que é dever das contratantes levar ao conhecimento da outra contratante todos os elementos relevantes de que se tenha conhecimento e que possam impactar nas bases do negócio e no animus contrahendi, independentemente da relevância que a parte omissa atribua a tais fatos. Não se pode jamais olvidar que os contratos surgem da intersecção das declarações jurídico-negociais das partes contratantes, pelo que uma das partes apenas pode adequadamente formar sua intenção negocial e avaliar seu interesse na formação do vínculo contratual com base nas informações que são disponibilizadas pelo outro contratante relativamente ao objeto e às condições do negócio. Autorizar e tutelar a omissão de informações sensíveis romperia a própria lógica da boa-fé que deve pautar as relações negociais.” (Arbitragem CMA No. 437, p. 47; sentença arbitral tornada pública em sede de ação anulatória).3  Em artigo sobre o tema,  cuja leitura se recomenda, dois advogados escreveram o seguinte: “while under Brazilian Law the buyer is required to act with reasonable diligence, there is no equivalent doctrine to the caveat emptor rule as applied in the US. Brazilian Law does impose, however, a duty of disclosure on seller during negotiations, as a corollary of the general statutory principle of good faith.”4Marcelo Roberto Ferro & Antonio Pedro Garcia de Souza, International Post-M&A Arbitrations in Brazil, in International Arbitration: Law and Practice in Brazil 4 (Peter Sester ed., 2020).4  Ademais, destacaram que,  ao contrário do que acontece no sistema do common law,  “Brazilian law gives great importance to the parties’ conduct during the negotiations and performance of agreements, to the point it may prevail over the contract’s literal provisions.”5Id.5

Em linhas gerais,  os practitioners norte-americanos encaram o Direito de uma maneira mais pragmática do que os brasileiros.  O common law¾de origem anglo-americana ou não¾enxerga o direito como uma construção jurisprudencial,  amparando-se em um sistema de precedentes judiciais (doutrina do stare decisis).  Ainda que no common law também se dê valor ao Direito positivado,  a lei positivada não assume a mesma relevância que ela tem para países de civil law,  como o Brasil.

No Brasil,  a impressão geral que parece vir de fora do país é que a lei,  por ser alegadamente engessada,  limitaria a capacidade interpretativa dos juízes.  Não é bem assim,  porém.  A figura do juge bouche de la loi,  para citar uma conhecida expressão francesa,  já foi superada,  inclusive no Brasil.6Georges Abboud & Gustavo Favero Vaughn, Notas Críticas sobre a Reclamação e os Provimentos Judiciais Vinculantes do CPC, 287 Rev. Pro. 409, 409 (2019).6  Na prática brasileira,  a atuação jurisdicional tem se mostrado bem menos rígida (flexível até demais,  alguns dirão) quanto à interpretação de textos normativos.

Quando se comparam os regimes jurídicos norte-americano e brasileiro,  o ponto nevrálgico,  a meu ver,  parece ser a segurança jurídica.  O modelo do common law norte-americano é superior ao modelo de civil law brasileiro no tocante à segurança jurídica.  E isso é devido, em grande medida,  à doutrina do stare decisis.

A garantia da segurança jurídica é fundamental para um bom ambiente de negócios (atrai investimentos, por exemplo),  aqui incluídas as transações de M&A.  Porque o modelo do common law norte-americano assegura, em regra, estabilidade,  uniformidade e previsibilidade decisória,  não é recomendável importar institutos jurídicos de lá para o Direito Brasileiro sem que sejam eles situados em seus devidos contextos.

Antes de concluir este primeiro tópico sobre o evento,  não posso deixar de tecer comentários sobre questões de ordem pública vis-à-vis o Direito Brasileiro,  já que muito foi dito sobre isso no início dos debates.  Alegações de violação à ordem pública são suscitadas em situações diversas no Direito Brasileiro,  principalmente em processos judiciais.  Busca-se,  no mais das vezes,  o reconhecimento de uma nulidade processual ou a redução de condenações pecuniárias.

O conceito de ordem pública é vago, e não há lei que o defina no Brasil.  Por isso,  dá margem a subjetivismos decisórios,  o que,  por conseguinte,  gera insegurança jurídica.  Como não há um conceito claro a respeito do que seria ordem pública, e questões dessa espécie podem ser arguidas e enfrentadas a qualquer tempo, em qualquer grau de jurisdição,  a ordem pública é um fator legítimo de preocupação daqueles que litigam no Brasil¾brasileiros ou estrangeiros.7Superior Tribunal de Justiça – (doravante apenas STJ) (Superior Court of Justice), REsp 987.598/PR, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em Aug. 27, 2013. (“As matérias de ordem pública, que envolvem regras imperativas e inafastáveis pela vontade das partes, podem, a qualquer tempo, ser conhecidas pelo Tribunal, inclusive de ofício.”).7

Questões de ordem pública no contexto de disputas de M&A submetidas à arbitragem podem ser problemáticas a depender da composição do tribunal arbitral.  Pode ser que haja um árbitro mais sensível a essa sorte de argumento (um magistrado aposentado,  por exemplo).  A situação parece ser mais delicada em processos judiciais,  em que,  no contexto contratual,  o Estado-juiz reconhece a natureza de ordem pública de temas como prescrição,8STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1.965.396/RS, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, 2022. (“a prescrição é matéria de ordem pública e, portanto, pode ser suscitada a qualquer tempo nas instâncias ordinárias, ainda que alegada em embargos de declaração, não estando sujeita a preclusão.”).8 incidência de juros de mora9STJ, AgInt no REsp 1.571.268/RS, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, 2022. (“os juros de mora, por se tratarem de matéria de ordem pública, podem ser modificados de ofício pelo magistrado.”).9 e valor de cláusulas penais.10STJ, REsp 1.898.738/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, 2021. (“o abrandamento do valor da cláusula penal em caso de adimplemento parcial é norma cogente e de ordem pública, consistindo em dever do juiz e direito do devedor a aplicação dos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico entre as prestações, os quais convivem harmonicamente com a autonomia da vontade e o princípio pacta sunt servanda.”).10

É em sede judicial¾na fase pós-arbitral, em particular¾que questões de ordem pública podem repercutir mais gravemente em disputas de M&A submetidas à arbitragem.  A criatividade dos advogados pode levar o Poder Judiciário a anular (ou não homologar,  a depender da hipótese) uma sentença arbitral por considerá-la afrontosa à ordem pública brasileira.  Isso poderia ocorrer,  por exemplo,  com uma sentença arbitral que condenasse o vendedor a pagar indenização ao comprador por ter declarado informação falsa,  mas fixasse o quantum debeatur sem observar o parâmetro do artigo 944 do Código Civil,  segundo o qual a “indenização mede-se pela extensão do dano.”  Essa regra legal já chamou a atenção do Poder Judiciário brasileiro em, ao menos, duas circunstâncias envolvendo arbitragem e disputas de M&A.11STJ, SEC 9.412/EX, relator Ministro Felix Fischer, relator para acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, 2017. (“Estabelecida a observância do direito brasileiro quanto à indenização, extrapola os limites da convenção a sentença arbitral que a fixa com base na avaliação financeira do negócio, ao invés de considerar a extensão do dano.”). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - TJ-SP (São Paulo State Court of Appeals), Apelação Cível 1048961-82.2019.8.26.0100, relator Desembargador Azuma Nishi, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, 2021. (“era de rigor que fossem expostas as razões pelos quais os árbitros entenderam ser justa a indenização fixada no importe de 25% do preço, considerando-se, ainda, os desdobramentos fáticos no equilíbrio do contrato, com base em parâmetros objetivos, tais como a diminuição do faturamento ou do EBITD, a fim de que a indenização contemplasse o comando do art. 944 do CC.”).11 

Em síntese,  vejo com bons olhos a importação de institutos estrangeiros que funcionam,  desde que eles sejam bem compreendidos por quem negocia e elabora contratos de M&A,  por quem vai a juízo reclamar a tutela jurisdicional estatal ou privada,  assim como por quem decide de forma autoritativa,  com caráter vinculante às partes,  as disputas relativas a operações de fusões e aquisições (juízes e árbitros).  Sobre as questões de ordem pública,  é preciso sempre estar atento e trabalhar para evitar abusos.

B. Em torno do dolo em disputas de M&A

O evento então passou a focar na figura do dolo e sua importância prática na fase pré-contratual das operações de M&A,  que precedem a assinatura do contrato de alienação societária (signing).

Ao menos na concepção civilista brasileira,  o “dolo provém de uma indução em erro: o agente provoca, reforça, ou deixa que o erro persista na mente da vítima.”12Judith Martins-Costa, Os Regimes do Dolo Civil no Direito Brasileiro: Dolo Antecedente, Vício Informativo por Omissão e por Comissão, Dolo Acidental e Dever de Indenizar, 923 Rev. Trib. 115, 117 (2012).12  Para se falar em dolo,  deve haver,  “por parte do agente do dolo, ou deceptor, um consciente e reprovável enganar a outrem.”13Id.13  O dolo negocial,  assim,  “constitui o ato, positivo ou negativo, com que, ‘conscientemente, se induz, se mantém, ou se confirma outrem em representação errônea’.”14Id at 118.14 

Foi bem observado, durante o evento, que o primeiro passo nessa análise é identificar o regime de dolo aplicável¾dolo principal ou dolo acidental. Somente após a identificação do regime aplicável é que se saberá qual efeito a conduta dolosa terá em relação ao contrato de alienação societária.  Se o dolo for principal,  o contrato será anulável quando o vício for capaz de afetar a essência do contrato,  levando o comprador a querer desfazer o negócio mediante a sua anulação.15Código Civil (Lei 10.406/2002) (“Art. 145. São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa.”).15  Casos de dolo acidental,  aqueles em que,  a despeito do dolo,  “o negócio seria realizado, embora por outro modo,”  são resolvidos por perdas e danos,  sem necessidade de anular o contrato.16Código Civil (Lei 10.406/2002)(“Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo.”).16 

Aventou-se também, no evento, a figura do dolo parcial ou total.  O dolo parcial atacaria apenas parcela do negócio jurídico (uma ou mais cláusulas contratuais),  ao passo que o dolo total,  como o nome sugere,  implicaria a anulação completa do contrato de M&A.  O dolo parcial é especialmente relevante porque permite,  a depender da hipótese (se for possível preservar a essência do negócio),  extirpar do contrato apenas a parte viciada,  permanecendo inalteradas as disposições contratuais não afetadas pela conduta dolosa.17Código Civil (Lei 10.406/2002)(“Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.”).17 

Citou-se o caso Abengoa para retratar um exemplo concreto de arbitragem envolvendo operação de M&A em que a figura do dolo foi aplicada.18Supra note 18.18  A disputa envolveu um contrato de compra e venda de ações,  por meio do qual a compradora adquiriu a integralidade das ações de uma sociedade holding e outras empresas pertencentes à indústria sucroalcooleira.  Segundo a compradora,  após o fechamento da operação ela descobriu que o vendedor teria deixado de informar tudo o que deveria ter informado (ou teria prestado informações falsas) durante a due diligence e a fase de negociação do contrato de alienação societária.  A compradora argumentou que o vendedor teria agido com dolo ao omitir informações ou prestá-las de forma enganosa.

Analisando a existência de dolo no caso concreto,  o tribunal arbitral consignou em sentença que não estaria “satisfeito com o fato de a não divulgação pelos Requeridos do Contrato de Swap de Maio durante o curso de due diligence constituir dolo.”19STJ, SEC 9.412/US, at 161 e-STJ. Esse caso tornou-se público, no Brasil, após a tentativa de homologação, perante o Superior Tribunal de Justiça, de duas sentenças arbitrais estrangeiras.19  Na sequência da fundamentação,  a sentença arbitral de uma das arbitragens,20Arbitragem CCI No. 16176/JRF.20 atenta às características do dolo no Direito Brasileiro,  ressaltou não ter sido apresentada “qualquer evidência direta do objetivo dos Requeridos de indução ao erro através de má-fé ou fraude,” sendo certo,  ademais,  que a parte requerente não teria apresentado “também evidência suficiente ao Tribunal no sentido de inferir que o Vendedor tinha o propósito necessário de enganar ou fraudar para se considerar dolo.”21Id.21  Em arremate,  ficou registrado pelos árbitros que a “omissão do Vendedor é insuficiente para estabelecer que os Requeridos buscaram intencionalmente induzir a Requerente ao erro.”22Id.22

O dolo foi objeto de debate também na arbitragem envolvendo o controle da Varig,  uma companhia aérea brasileira.  O cerne da arbitragem,  administrada pela CCI e regida pela lei brasileira,  foi a manipulação do balanço da Varig pelos vendedores,  que, em razão disso, teriam vendido a companhia à Gol, outra companhia aérea brasileira, por um valor maior do que o devido.  Na concepção da compradora,  em suma,  essa manipulação se teria dado mediante a prática de ato doloso.

Interessante notar que,  na sentença arbitral,  os árbitros reconheceram a existência de duas categorias de dolo no Direito Brasileiro,  conforme dito acima: o dolo causal (principal) e o dolo acidental.  Para distinguir essas duas espécies,  o tribunal explicou,  tomando por base um contrato de compra e venda,  que “se o dolo afeta o preço, e o comprador tivesse comprado, mas a um preço inferior, o dolo será acidental; ao contrário, se afeta a essência da coisa, e comprador nunca tivesse celebrado o contrato, o dolo considerar-se-ia causal e permitiria¾se assim lhe interessasse¾a anulação do negócio.”23Arbitragem CCI No. 15372/JRF. Caso tornado público em sede de ação anulatória de sentença arbitral – STJ, EREsp 1.656.613-SP, at 219 e-STJ.23  A sentença reconheceu que “a distinção entre ambos os tipos de dolo tem um elemento subjetivo: em essência depende da atitude da vítima e da pretensão que exerça no processo judicial no qual solicita a pretensão.”24Id.24  Ao final,  o tribunal entendeu que teria havido dolo de terceiro.

No que se refere ao dolo,  desponta imprescindível examinar minuciosamente,  caso a caso,  a conduta das partes,  para que se possa aferir se houve ou não dolo na prática de atos vinculados à operação de M&A e quais possíveis efeitos decorrentes disso.  Conforme lembrado no evento,  disputas de M&A tendem a envolver alegações de dolo acidental,  que levam a um remédio indenizatório,  porque o desfazimento do negócio jurídico (ao menos a anulação total) seria desinteressante,  para dizer o mínimo, ao comprador,  que já estaria atuando na administração da sociedade por ele adquirida.

C. O que é isto – sandbagging?

Falou-se, na sequência, sobre cláusulas de sandbagging e sua eventual compatibilidade com o regime de civil law que impera no Brasil e em Portugal.  As conclusões dos palestrantes foram afirmativas,  isto é,  tais cláusulas seriam a priori admissíveis nesses países.

Cláusulas de sandbagging estão relacionadas com o já mencionado dever de informar.  Pode o comprador que toma conhecimento de alguma declaração incorreta do vendedor se valer desse argumento para obter indenização após a transação de M&A ter sido concluída?  As cláusulas de sandbagging tratam de hipóteses como essa.25“Transactional lawyers often refer to this practice-knowing of the breach, closing, and then asserting a post-closing claim-as ‘sandbagging.’ Buyer, in this case, chose to close its purchase of Target rather than renegotiate the deal's terms or walk away (and then, perhaps, sue Seller). The question is whether Buyer has a post-closing claim under the Seller's indemnity. The answer is surprisingly unsettled.” (Charles K. Whitehead, Sandbagging: Default Rules and Acquisition Agreements, 36 Del. J. Corp. L. 1081, 1083 [2011]).25

Há três cenários que podem ser observados em contratos de alienação de participação societária a esse respeito: (1) permissão expressa do sandbagging (cláusulas pro-sandbagging); (2) vedação expressa do sandbagging (cláusulas anti-sandbagging); ou (3) ausência de disposição sobre o assunto.  De um lado,  a cláusula pro-sandbagging “consiste em uma disposição em que o direito do comprador em ser indenizado permanece intacto, independentemente de qualquer conhecimento prévio (antes do fechamento) sobre quebra de uma declaração ou garantia prestada pelo vendedor no contrato.”26Kalansky & Sanchez, supra note 8, at 146.26  De outro lado,  a cláusula anti-sandbagging “estabelece que o comprador acorda afastar seu direito indenizatório em relação às declarações e garantias prestadas pelo vendedor sobre as quais, antes do fechamento da operação, tinha conhecimento de sua inexatidão.”27Kalansky & Sanchez, supra noite 8, at 147.27 

Quanto ao Brasil,  a grande problemática em torno das cláusulas de sandbagging parece ser o princípio da boa-fé objetiva,  que é praticamente onipresente em disputas contratuais,  inclusive as societárias.  O artigo 422 do Código Civil prevê que os “contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”28Some-se a essa previsão o que dispõe o artigo 113 do Código Civil (Lei Federal 10.406/2002): “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”28  Como conciliar essa previsão e os deveres anexos da boa-fé objetiva com o sandbagging?

No caso de cláusulas pro-sandbagging,  um tribunal arbitral poderia limitar eventual indenização em favor do comprador por entender que ele não agiu de boa-fé ao guardar para si a informação sobre a declaração equivocada feita pelo vendedor (postura oportunista, por assim dizer).  A lógica seria a seguinte: se o comprador sabia que a declaração era falsa,  teve a oportunidade de informar o vendedor sobre esse equívoco durante a execução do contrato de M&A,  mas deliberadamente não informou o vendedor e,  tempos depois,  requereu o pagamento de indenização com base nessa informação prestada de modo equivocado,  “poder-se-ia entender, nesse caso, que houve desequilíbrio entre as partes, uma que entregou os documentos necessários para serem analisados e outra que usou de tais documentos para obter propositalmente a indenização, mesmo tendo a oportunidade de informar o vendedor sobre a incorreção.”29Kalansky & Sanchez, supra note 8, 151.29  Em tal cenário,  o tribunal arbitral poderia simplesmente deixar de aplicar a cláusula pro-sandbagging sob o fundamento de que o comprador teria violado a boa-fé objetiva.  Uma outra possibilidade,  mais extrema e que requer maiores reflexões,  seria cogitar de abuso de direito,  à luz dos artigos 186 e 187 do Código Civil Brasileiro.30Código Civil (Lei Federal 10.406/2002)(“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”)“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”).30

É importante,  contudo,  analisar atentamente os fatos de cada caso concreto para verificar se o comprador teve ou não intenção de se aproveitar do vendedor,  deixando ele prestar uma informação falsa para, em seguida, postular indenização.  Nesse sentido,  deve-se “examinar a prova do conhecimento que o comprador tinha a respeito da declaração falsa, buscando entender quem realmente teve acesso a referida informação e como ela foi transmitida por quem teve acesso a tal informação ao comprador.”31Kalansky & Sanchez, supra note 8, at 152.31  Se o comprador não teve intenção de induzir o vendedor a erro para obter vantagem financeira com isso ou,  então,  se o conhecimento do comprador sobre a declaração falsa não era totalmente claro,  inequívoco,  “não há porque cercear o direito do comprador de ser indenizado pelos danos sofridos, de forma que a cláusula pro sandbagging, ou até mesmo o silêncio do contrato sobre o assunto, terão como consequência a reparação civil.”32Id.32

Um caso interessante sobre sandbagging,  porém fictício,  foi apresentado aos estudantes de arbitragem que participaram da XI Edição da Competição Brasileira de Arbitragem e Mediação Empresarial,  realizada pela CAMARB no Brasil,  em São Paulo.  O referido caso teve o seguinte pano de fundo: contrato de compra e venda da integralidade das ações da empresa Camus,  a ser adquirida pela empresa Saga e vendida pela empresa BACAMASO; durante as etapas finais das negociações,  a vendedora informou à compradora que,  até aquele momento,  sua investigação interna não teria identificado práticas anticoncorrenciais; a compradora,  porém,  sabia que havia um inquérito contra a vendedora tramitando no CADE¾Conselho Administrativo de Defesa Econômica,  uma autarquia federal brasileira,  vinculada ao Ministério da Justiça,  que zela pela livre concorrência no mercado; sem informar a vendedora sobre isso,  a compradora negociou a inserção de uma cláusula pro-sandbagging no contrato de alienação societária.33Caso com esclarecimentos – Competição brasileira de arbitragem e mediação empresarial CAMARB, CAMARB – Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial (Jul. 22, 2022), https://camarb.com.br/en/wp-content/uploads/2020/06/xi-cbam-caso-final-com-esclarecimentos-e-correcoes.pdf.33  Os participantes dessa competição, inclusive os avaliadores,  travaram bons debates a respeito da possibilidade de a compradora ser indenizada pela vendedora.

Tratar de sandbagging não é simples.  No Brasil,  parece-me que esse tema ainda é pouco explorado pela doutrina e pouco ou quase nada enfrentado pelo Poder Judiciário.  Viu-se que a arbitragem é um campo fértil para resolver disputas envolvendo cláusulas como essa.  Caberá às partes indicar árbitros tecnicamente qualificados para julgar disputas complexas envolvendo transações de M&A.

D. Contratos coligados e cláusulas de resolução de disputas conflitantes

O quarto e último tópico diz respeito a possíveis inconsistências entre cláusulas de resolução de disputas inseridas em contratos relacionados a uma mesma operação de M&A.  Esse tema é igualmente delicado.  Cláusulas desse tipo,  inclusive cláusulas arbitrais,  por vezes não são objeto do mesmo grau de cuidado que outras cláusulas constantes de um contrato de alienação societária.35“Despite the crucial importance of the arbitration agreement, since it is, as stated, the source of the jurisdiction of the arbitral tribunals, … the parties do not put due care upon drafting their arbitrating agreements, especially as regards to contractual clauses. … the arbitration clause is usually seconded and left to last, after all the substantive points of the contract that the parties wish to conclude have already been negotiated and agreed. This is precisely why the arbitration clause is commonly referred to as the ‘champagne’ clause or the ‘midnight’ clause.” (Paulo de Tarso Domingues, The Arbitration Agreement, in International Arbitration in Portugal 47, 49-50 [André Pereira da Fonseca, Dário Manuel Vicente, et al. eds., 2020]).35

De saída,  avulta registrar que não há,  em regra,  óbice à existência concomitante de uma cláusula arbitral e uma cláusula de eleição de foro em um mesmo contrato de M&A.  Cada uma dessas cláusulas exerce função específica,  sendo a cláusula compromissória indispensável para legitimar a jurisdição arbitral.  O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a “cláusula de eleição de foro não é incompatível com o juízo arbitral, pois o âmbito de abrangência pode ser distinto, havendo necessidade de atuação do Poder Judiciário, por exemplo, para a concessão de medidas de urgência; execução da sentença arbitral; instituição da arbitragem quando uma das partes não a aceita de forma amigável.”36STJ, REsp 904.813/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, 2011.36  Haveria inconsistência¾e aqui reside a exceção à regra mencionada no início deste parágrafo¾se tanto a cláusula arbitral quanto a cláusula de eleição de foro tivessem idêntica finalidade.

Suponha-se agora que uma operação de M&A demande,  em razão de suas particularidades,  a celebração de um contrato de compra e venda de ações e outro de cessão de crédito,  este segundo para regulamentar o cumprimento de parte das obrigações ajustadas entre comprador e vendedor.  Se o contrato principal contiver cláusula arbitral e o contrato de cessão de crédito silenciar sobre arbitragem,  em qual foro seria resolvido eventual disputa envolvendo ambos os contratos: arbitragem, Poder Judiciário ou ambos?  Entra em cena,  aqui,  o princípio da autonomia da vontade,  do qual se extrai um elemento basilar da arbitragem: o consentimento das partes quanto à jurisdição arbitral.

O Superior Tribunal de Justiça já enfrentou questão como essa,  tendo considerado possível estender os efeitos da cláusula compromissória prevista no contrato principal ao contrato de cessão de crédito,  ainda que este não dispusesse sobre arbitragem.  A síntese do julgamento,  ainda que extensa,  bem ilustra o cenário fático da disputa e as conclusões da referida corte:

1. Controverte-se … se a cláusula compromissória arbitral, inserta no contrato de Compra e Venda de Quotas de Universidade e Outras Avenças - dito contrato principal -, deve ser estendida, a fim de atrair a competência do Tribunal arbitral para dirimir litígio advindo do contrato de cessão de direitos creditórios, àquele coligado. 2. A coligação contratual pode, eventualmente - e não necessariamente - ensejar a extensão da cláusula compromissória arbitral inserida no contrato principal ao contrato acessório a ele conexo se a indissociabilidade dos ajustes em coligação, evidenciada pela ausência de autonomia das obrigações ajustadas em cada contrato, considerado o elevado grau de interdependência, tornar impositiva a submissão de ambos os contratos à arbitragem, sem descurar, na medida do possível, da preservação da autonomia da vontade das partes contratantes de se submeterem à arbitragem. 2.1 Na hipótese, sobressai evidenciado que o contrato de cessão de crédito teve por objeto definir o modo pelo qual se daria o cumprimento de parte do pagamento estipulado no contrato principal de compra e venda. Trata-se, pois, de pactuação destinada justamente a dar consecução ao cumprimento de parte da obrigação estabelecida no contrato de compra e venda da Universidade em questão. Não há, assim, nenhuma autonomia das obrigações ajustadas no contrato acessório em relação ao principal, a viabilizar, de modo fragmentado e por jurisdições que não se comunicam, a análise de controvérsia advinda daquele (contrato de cessão de crédito), sem imiscuir-se nos contornos gizados nesse último (contrato de compra e venda). ... 3. A extensão objetiva do compromisso arbitral, nessa específica circunstância, não tem o condão de comprometer a autonomia da vontade das partes contratantes de submeterem à arbitragem, vetor basilar dessa jurisdição. Isso porque, quanto maior for o grau de interseção entre os ajustes integrantes do sistema contratual, sobretudo na hipótese de inexistir autonomia da obrigação estipulada no contrato acessório em relação àquela estabelecida no contrato principal, maior será a intensidade da participação dos atores contratuais nesse último ajuste, em que estipulada a cláusula compromissória arbitral. 4. Ademais, a abrangência da cláusula compromissória arbitral inserta no contrato principal, que não estabeleceu nenhuma ressalva em relação a ajuste coligado ali já previsto, revelaria, por si, a nítida intenção das partes signatárias de submeter à arbitragem todos os conflitos oriundos ou relacionados ao contrato de compra e venda da universidade, a autorizar a extensão objetiva da cláusula arbitral ao contrato de cessão de crédito a ele conexo. Nesse contexto, não impressiona o fato, em si, de o contrato acessório de cessão de crédito ter previsto cláusula de eleição de foro, devendo-se, pois, adequá-la às exceções estabelecidas no contrato principal, que foi expresso, e sem reservas, em instituir a arbitragem para todas as controvérsias oriundas do contrato de compra e venda da universidade ou a ele relacionados.37STJ, REsp 1.834.338/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, 2020.37

Em outro caso—não relacionado a operações de M&A,  o Superior Tribunal de Justiça entendeu que,  reconhecida a coligação contratual,  seria “possível a extensão da cláusula compromissória prevista no contrato principal [de abertura de crédito] aos contratos de ‘swap’, pois integrantes de uma operação econômica única.”38STJ, REsp 1.639.035/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, 2018.38  Tal decisão ressaltou,  ademais,  que no sistema de coligação contratual “o contrato reputado como sendo o principal determina as regras que deverão ser seguidas pelos demais instrumentos negociais que a este se ajustam, não sendo razoável que uma cláusula compromissória inserta naquele não tivesse seus efeitos estendidos aos demais.”39Id.39

Pela leitura das decisões acima referenciadas,  parece que o Superior Tribunal de Justiça considerou factível,  sem afrontar a autonomia da vontade,  submeter à jurisdição arbitral a resolução de disputas referentes inclusive a contratos (acessórios) que não continham cláusulas compromissórias.  Para tanto,  baseou-se na teoria da operação econômica única,  aparentemente aplicável a operações de M&A.40“Whenever parties actually had the intention of being bound by a single agreement, which—in their mind—constituted a single unit, whose elements could not be dissociated, and whenever an economic link between the agreements demonstrates that there is a necessary interdependence between them, such agreements should not be appreciated separately. A refusal to consider obligations arising from related contracts as obligations resulting from one indivisible agreement would not be a compliance with modern law and practice involving contracts in international commercial arbitration.” (Philippe Leboulanger, Multi-Contract Arbitration, 13 J. Int’l Arb. 43, 98 [1996]).40 

Há,  porém,  outras variáveis que tornam mais complicado o exame desse tema.  Qual seria a solução para a hipótese de as partes signatárias do contrato principal de compra e venda de ações que contém cláusula arbitral não serem as mesmas que assinaram contrato acessório sem cláusula arbitral?  A doutrina especializada já se pronunciou no seguinte sentido: “When the parties to the various contracts are not the same and the contracts do not contain compatible arbitration clauses, bringing the disputes together in one single arbitration proceeding will generally not be possible.”41Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations: Multi-party, Multi-contract, Multi-issue – A comparative Study 228-9 (2 ed., 2020).41  Alguns regulamentos de arbitragem,  como o da CCI,  dispõem sobre o tema,  na tentativa de evitar maiores problemas com relação a disputas envolvendo múltiplos contratos.42“Article 9: Multiple Contracts. Subject to the provisions of Articles 6(3)-6(7) and 23(4), claims arising out of or in connection with more than one contract may be made in a single arbitration, irrespective of whether such claims are made under one or more than one arbitration agreement under the Rules.” (ICC Rules of Arbitration (2012), art. 9, (Jul. 24, 2022), https://iccwbo.org/dispute-resolution-services/arbitration/rules-of-arbitration/.42

Esse assunto requer reflexões aprofundadas e depende de uma série de fatores para que certas respostas sejam dadas.  Entre dúvidas e incertezas,  é certo que,  se houver cláusula compromissória,  eventuais divergências sobre a jurisdição arbitral deverão ser resolvidas pelos árbitros,  em primeira mão e com prioridade temporal ao Poder Judiciário,  por força do princípio da competência-competência.

CONCLUSÃO

Eventos como o organizado pelo Young ITA a propósito da resolução de disputas de M&A pela via da arbitragem são necessários para que as complexidades sobre tal tema sejam ampla e francamente debatidas.  Isso contribui não só para incentivar a produção acadêmica,  como também para orientar advogados,  empresas,  empresários,  juízes e profissionais que atuam como árbitros a melhor compreenderem os institutos jurídicos relacionados à prática de fusões e aquisições e a melhor se posicionarem em decisões estratégicas antes,  durante e depois de concluída a transação.  Espera-se que o Young ITA realize eventos similares no futuro.

As ideias e comentários que apresentei no decorrer deste artigo,  como adiantado, basearam-se nos debates ocorridos durante o evento.  Não pretendi esgotar a análise das matérias que abordei,  mas,  na medida do possível,  procurei elucidar (ou questionar) determinadas discussões que,  sem dúvida,  não têm uma única resposta correta,  mas são absolutamente relevantes na prática.

Endnotes

1A KPMG é uma das maiores empresas de prestação de serviços profissionais, que incluem Audit (Auditoria), Tax (Impostos) e Advisory Services (Consultoria de Gestão e Estratégica, Consultoria Empresarial, Governança Corporativa, Assessoria Financeira, Riscos, Compliance, Fusões e Aquisições, Restruturações, Inovação e Tecnologia).
2Operações de fusões e aquisições em 2021 alcançaram melhor desempenho dos últimos 25 anos, KPMG (Jul. 21, 2022), https://home.kpmg/br/pt/home/insights/2022/03/volume-fusoes-aquisicoes-alcancou-recorde-2021.html.
3Heiko D. Ziehms, M&A Disputes and Completion Mechanisms 5 (2018).
4Anne V. Schlaepfer & Alexandre Mazuranic, Drafting Arbitration Clauses in M&A Agreements, in The Guide to M&A Arbitration 7, 7 (Amy C. Kläsener ed., 2020).
5Eliane Fischer & Michael Walbert, The Arbitration Agreement and Arbitrability, Efficient and Expeditious Dispute Resolution in M&A Transactions, in Austrian Yearbook on International Arbitration 21, 21 (Christian Klausegger, Peter Klein, et al. eds., 2017).
6Harald Frey & Dominique Müller, Arbitrating M&A Disputes, in Arbitration in Switzerland: The Practitioner's Guide 1116 (Manuel Arroyo ed., 2 ed., 2018).
7Relatório anual do CAM-CCBC – Centro de Arbitragem e Mediação, Centro de Arbitragem e Mediação-CAMCC, CAM-CCBC (Jul. 21, 2022), https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/arbitragem-estatisticas/.
8Fábio Siebeneichler de Andrade, Notas Sobre o Enquadramento da Cláusula Earn Out na Teoria Geral do Contrato de Compra e Venda, 25 Rev. Br. Dir. Civ. 141, 141 (2020).
9Daniel Kalansky & Rafael Biondi Sanchez, Sandbagging Clauses nas Operações de Fusões e Aquisições (M&A), in Novos Temas de Direito e Corporate Finance 145, 149 (Henrique Barbosa & Sérgio Botrel eds., 2019) [doravante apenas: Kalansky & Sanchez].
10A propósito do dever de informar, vale conferir as lições constantes de sentença arbitral proferida em disputa de M&A envolvendo a aquisição de um grupo econômico, em que o tribunal arbitral, aplicando o Direito Brasileiro, consignou o seguinte: “O dever informacional existe independentemente de previsão contratual, sendo um dever lateral corolário do princípio da boa-fé objetiva, nos termos chancelados no art. 422 do Código Civil. Quer-se com isso dizer que é dever das contratantes levar ao conhecimento da outra contratante todos os elementos relevantes de que se tenha conhecimento e que possam impactar nas bases do negócio e no animus contrahendi, independentemente da relevância que a parte omissa atribua a tais fatos. Não se pode jamais olvidar que os contratos surgem da intersecção das declarações jurídico-negociais das partes contratantes, pelo que uma das partes apenas pode adequadamente formar sua intenção negocial e avaliar seu interesse na formação do vínculo contratual com base nas informações que são disponibilizadas pelo outro contratante relativamente ao objeto e às condições do negócio. Autorizar e tutelar a omissão de informações sensíveis romperia a própria lógica da boa-fé que deve pautar as relações negociais.” (Arbitragem CMA No. 437, p. 47; sentença arbitral tornada pública em sede de ação anulatória).
11Marcelo Roberto Ferro & Antonio Pedro Garcia de Souza, International Post-M&A Arbitrations in Brazil, in International Arbitration: Law and Practice in Brazil 4 (Peter Sester ed., 2020).
12Id.
13Georges Abboud & Gustavo Favero Vaughn, Notas Críticas sobre a Reclamação e os Provimentos Judiciais Vinculantes do CPC, 287 Rev. Pro. 409, 409 (2019).
14Superior Tribunal de Justiça – (doravante apenas STJ) (Superior Court of Justice), REsp 987.598/PR, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em Aug. 27, 2013. (“As matérias de ordem pública, que envolvem regras imperativas e inafastáveis pela vontade das partes, podem, a qualquer tempo, ser conhecidas pelo Tribunal, inclusive de ofício.”).
15STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1.965.396/RS, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, 2022. (“a prescrição é matéria de ordem pública e, portanto, pode ser suscitada a qualquer tempo nas instâncias ordinárias, ainda que alegada em embargos de declaração, não estando sujeita a preclusão.”).
16STJ, AgInt no REsp 1.571.268/RS, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, 2022. (“os juros de mora, por se tratarem de matéria de ordem pública, podem ser modificados de ofício pelo magistrado.”).
17STJ, REsp 1.898.738/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, 2021. (“o abrandamento do valor da cláusula penal em caso de adimplemento parcial é norma cogente e de ordem pública, consistindo em dever do juiz e direito do devedor a aplicação dos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico entre as prestações, os quais convivem harmonicamente com a autonomia da vontade e o princípio pacta sunt servanda.”).
18STJ, SEC 9.412/EX, relator Ministro Felix Fischer, relator para acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, 2017. (“Estabelecida a observância do direito brasileiro quanto à indenização, extrapola os limites da convenção a sentença arbitral que a fixa com base na avaliação financeira do negócio, ao invés de considerar a extensão do dano.”). Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - TJ-SP (São Paulo State Court of Appeals), Apelação Cível 1048961-82.2019.8.26.0100, relator Desembargador Azuma Nishi, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, 2021. (“era de rigor que fossem expostas as razões pelos quais os árbitros entenderam ser justa a indenização fixada no importe de 25% do preço, considerando-se, ainda, os desdobramentos fáticos no equilíbrio do contrato, com base em parâmetros objetivos, tais como a diminuição do faturamento ou do EBITD, a fim de que a indenização contemplasse o comando do art. 944 do CC.”).
19Judith Martins-Costa, Os Regimes do Dolo Civil no Direito Brasileiro: Dolo Antecedente, Vício Informativo por Omissão e por Comissão, Dolo Acidental e Dever de Indenizar, 923 Rev. Trib. 115, 117 (2012).
20Id.
21Id at 118.
22Código Civil (Lei 10.406/2002) (“Art. 145. São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa.”).
23Código Civil (Lei 10.406/2002)(“Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo.”).
24Código Civil (Lei 10.406/2002)(“Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.”).
25Supra note 18.
26STJ, SEC 9.412/US, at 161 e-STJ. Esse caso tornou-se público, no Brasil, após a tentativa de homologação, perante o Superior Tribunal de Justiça, de duas sentenças arbitrais estrangeiras.
27Arbitragem CCI No. 16176/JRF.
28Id.
29Id.
30Arbitragem CCI No. 15372/JRF. Caso tornado público em sede de ação anulatória de sentença arbitral – STJ, EREsp 1.656.613-SP, at 219 e-STJ.
31Id.
32“Transactional lawyers often refer to this practice-knowing of the breach, closing, and then asserting a post-closing claim-as ‘sandbagging.’ Buyer, in this case, chose to close its purchase of Target rather than renegotiate the deal's terms or walk away (and then, perhaps, sue Seller). The question is whether Buyer has a post-closing claim under the Seller's indemnity. The answer is surprisingly unsettled.” (Charles K. Whitehead, Sandbagging: Default Rules and Acquisition Agreements, 36 Del. J. Corp. L. 1081, 1083 [2011]).
33Kalansky & Sanchez, supra note 8, at 146.
34Kalansky & Sanchez, supra noite 8, at 147.
35Some-se a essa previsão o que dispõe o artigo 113 do Código Civil (Lei Federal 10.406/2002): “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”
36Kalansky & Sanchez, supra note 8, 151.
37Código Civil (Lei Federal 10.406/2002)(“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”)“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”).
38Kalansky & Sanchez, supra note 8, at 152.
39Id.
40Caso com esclarecimentos – Competição brasileira de arbitragem e mediação empresarial CAMARB, CAMARB – Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial (Jul. 22, 2022), https://camarb.com.br/en/wp-content/uploads/2020/06/xi-cbam-caso-final-com-esclarecimentos-e-correcoes.pdf.
41“Despite the crucial importance of the arbitration agreement, since it is, as stated, the source of the jurisdiction of the arbitral tribunals, … the parties do not put due care upon drafting their arbitrating agreements, especially as regards to contractual clauses. … the arbitration clause is usually seconded and left to last, after all the substantive points of the contract that the parties wish to conclude have already been negotiated and agreed. This is precisely why the arbitration clause is commonly referred to as the ‘champagne’ clause or the ‘midnight’ clause.” (Paulo de Tarso Domingues, The Arbitration Agreement, in International Arbitration in Portugal 47, 49-50 [André Pereira da Fonseca, Dário Manuel Vicente, et al. eds., 2020]).
42STJ, REsp 904.813/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, 2011.
43STJ, REsp 1.834.338/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, 2020.
44STJ, REsp 1.639.035/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, 2018.
45Id.
46“Whenever parties actually had the intention of being bound by a single agreement, which—in their mind—constituted a single unit, whose elements could not be dissociated, and whenever an economic link between the agreements demonstrates that there is a necessary interdependence between them, such agreements should not be appreciated separately. A refusal to consider obligations arising from related contracts as obligations resulting from one indivisible agreement would not be a compliance with modern law and practice involving contracts in international commercial arbitration.” (Philippe Leboulanger, Multi-Contract Arbitration, 13 J. Int’l Arb. 43, 98 [1996]).
47Bernard Hanotiau, Complex Arbitrations: Multi-party, Multi-contract, Multi-issue – A comparative Study 228-9 (2 ed., 2020).
48“Article 9: Multiple Contracts. Subject to the provisions of Articles 6(3)-6(7) and 23(4), claims arising out of or in connection with more than one contract may be made in a single arbitration, irrespective of whether such claims are made under one or more than one arbitration agreement under the Rules.” (ICC Rules of Arbitration (2012), art. 9, (Jul. 24, 2022), https://iccwbo.org/dispute-resolution-services/arbitration/rules-of-arbitration/.
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About the Contributor
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International Lawyer at Cleary Gottlieb Steen & Hamilton LLP. LL.M., Columbia Law School (2022); University of São Paulo Law School (2021). Senior Advisor, American Review of International Arbitration (ARIA); Member, Chartered Institute of Arbitrators (MCIArb), Young ITA, ICDR Young & International, Brazilian Arbitration Committee. Co-Chair, Academic Council of R.E.A.L.